PROJETO AÇÕES AFIRMATIVAS

Argumento:

No Brasil temos aproximadamente 57% da população constituída por pessoas não brancas, sendo 56,2% de pele negra (pretos pardos) segundo pesquisa IBGE 2019. Mesmo sendo  um país com maioria negra,  0% dos cargos de chefia das empresas brasileiras são ocupados por brancos (IBGE 2017). As pesquisas refletem o que facilmente observamos nas cidades brasileiras: brancos ocupando lugares de destaque e poder, enquanto negros, em sua maioria encontram-se em situação de desvantagem econômica ou de subalternidade. A situação social brasileira é fruto de uma complexa engrenagem que envolve um passado escravocrata, estruturalmente racista, com uma lógica colonial vigente até os dias de hoje.
Lélia Gonzales (2020) afirma que o racismo é o sintoma brasileiro, denega-se a questão racista sob o véu da democracia racial, a miscigenação da população serve como argumento (raso e falso) para uma pretensa igualdade entre todos- mito da democracia racial- fato que não se sustenta quando analisamos as pesquisas, quando lemos as páginas policiais do jornal ou simplesmente quando paramos e observamos ao nosso redor. Em nossas intuições psicanalíticas o quadro não é diferente.

Brancos desfrutam de vantagens materiais e subjetivas em relação aos sujeitos não brancos. Lia V. Schucman (2020), citando o trabalho da acadêmica e ativista anti-racismo Peggy McIntosh, demonstra como o racismo desemboca em vantagens para os sujeitos brancos. Abaixo alguns exemplos: – Posso fazer compras sozinha na maior parte do tempo, com bastante certeza de que não serei seguida ou assediada. – Não preciso educar meus filhos para que tenham consciência do racismo sistêmico para sua própria proteção física diária.

– Eu posso xingar, ou usar roupas de segunda mão, não responder cartas, sem que as pessoas atribuam essas escolhas à má índole, à pobreza ou analfabetismo da minha raça Cabe ressaltar que as regalias – principalmente as simbólicas- dos brancos ocorrem em qualquer classe social. Nesse sentido o problema do racismo é anterior ao de classe econômica. Com a expressão “pacto narcísico da branquitude”, Maria Parecida Bento (2017) explica como os brancos se unem e se protegem dentro da sociedade. Brancos dão oportunidade aos brancos, distribuem riquezas entre si, fecham-se em clãs, alimentam e protegem seu narcisismo convictos de sua superioridade. A crença supremacista tem por base colocar o sujeito não branco no lugar do outro (o diverso, o desvalido, o agressivo, o sexualizado) ou como diz Grada Kilomba (2019), aprisionar o negro como outridade do branco. A manutenção do racismo é necessária para assegurar ao branco sua fantasia de superioridade e seus benefícios materiais.

Freud desde o início de seus estudos refere as questões narcísicas como algo estrutural. E nós enquanto instituição psicanalítica temos o dever de fazer circular tais conceitos a fim de que possamos abrir espaços para as diferenças.

Diversos autores ocupam-se dos estudos das relações raciais desde a metade do século XX, entre eles: psicanalistas, psicólogos, psiquiatras, filósofos, antropólogos, etc. Frantz Fanon se destaca como um desses grandes pensadores que ousou debater dentro dos constructos psicanalíticos a questão do racismo. No Brasil temos autoras importantes como Lélia Gonzales, Neusa Souza e Santos, Virginia Bicudo, entre outras, que também se dedicaram ao tema. Chama atenção que apesar de uma vasta literatura (brasileira e estrangeira) nessa temática, dentro das instituições psicanalíticas é raro ver essas obras contempladas nos programas dos seminários. Raro também é a presença de colegas negros em nossas sociedades. A psicanálise no Brasil tem sido pensada e atuada majoritariamente por brancos, deixando bastante evidente o pacto narcísico da branquitude em nosso meio.

Assumindo que vivemos em uma sociedade racista e que somos parte dessa engrenagem, propomos, dentro do que nos cabe enquanto psicanalistas, um projeto de ações afirmativas para o CEPdePA. A psicanálise se propõe desde seus inícios a pensar o humano atravessado pela cultura, portanto acreditamos que a transmissão da psicanálise em um país de maioria negra, não pode ser perpetuada apenas por brancos, de outra forma construiremos um saber e um ofício alienado do cenário social. Para tanto, pensamos que é urgente e fundamental a implementação de vagas para profissionais negros e indígenas que desejem ingressar na formação em psicanálise do CEPdePA, financiadas em seu valor integral por um fundo a ser criado na instituição, bem como uma reestruturação dos programas de seminário, atividades científicas e grupo de estudos que incluam autores e convidados negros e indígenas. Acreditamos que é a partir da convivência em lugar de simetria e do letramento racial que podemos combater o racismo em nossos centros de formação e fazer a nossa parcela em direção a uma sociedade mais justa.

 

Referências:

Bento, M.A. (2017) Psicologia Social do Racismo. Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Editora Vozes, São Paulo.
Gonzales, L. (2020) Por Um feminismo Afro Latino Americano. Editora Zahar, São Paulo.
Kilomba, G. (2019) Memórias da Plantação. Editora Cobogó, São Paulo.
Schucman, L.V.(2020) Entre o encardido, o branco e o braquíssimo. Branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. Editora Veneta, São Paulo.

Coordenadoras do projeto: Rafaela Degani e Bárbara Parobé Mariano da Rocha

Porto Alegre, Outubro de 2021.